quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Vai uma reportagem?

Documentário “O Mercado de Notícias” traça olhar crítico sobre o jornalismo contemporâneo e discute os rumos da profissão

Por Nilton Carvalho

Depoimentos de jornalistas
do nosso tempo dividem espaço
com trechos da peça
The Staple of News 
Na feira popular, frutas, legumes e hortaliças atraem olhares da clientela. A mercadoria é parte fundamental na engrenagem do capitalismo, gostemos ou não. Hoje quase tudo está à venda, inclusive notícia, seja ela veiculada em jornais, revistas, emissoras de tevê, rádio ou internet. Ao propor uma reflexão sobre a produção jornalística atual, o documentário O Mercado de Notícias, de Jorge Furtado, que estreou na última sexta-feira (8), mostra que selecionar conteúdo informativo atualmente é tarefa árdua, e que às vezes banana pode estar sendo comprada no lugar de alface – e vice-versa.

No filme elaborado por Furtado, depoimentos de jornalistas do nosso tempo dividem espaço com trechos da peça The Staple of News, escrita em 1625, pelo dramaturgo inglês Ben Jonson, cuja temática é ambientada em meio ao surgimento da imprensa. O tal mercado noticioso, à época em que começou a publicar suas primeiras linhas no início do século XVII, na Europa, curiosamente era mais ficcional do que real. Ao observar o ambiente informativo atual, é possível encontrar resquícios da ficção usada em outros tempos, se considerarmos que fatos são aumentados, distorcidos e até mesmo inventados.

A função primária do jornalista, de maneira bem resumida, é narrar um fato com clareza para informar as pessoas. Mas, no caso do Brasil, no momento em que os principais meios de comunicação ficam concentrados nas mãos de pequenos grupos, a missão do jornalismo esbarra em alguns obstáculos, e a informação passa a se relacionar perigosamente com o lucro. Surgem então interesses econômicos e políticos que interferem diretamente no produto final: a reportagem – oferecida ao consumido diariamente. Compreender esse mecanismo explica o motivo pelo qual determinados assuntos ganham ampla cobertura, enquanto outros simplesmente são ignorados. Pior ainda é a prática que se tornou comum, e infelizmente reproduzida por uma parcela da população, de destruir reputações para minar determinados grupos sociais, principalmente os que passaram a ter voz e direitos nos últimos anos.

Mais do que analisar o jornalismo atual, O Mercado de Notícias alerta para um tipo de cobertura midiática extremamente perigosa, baseada na forma-mercadoria da imagem, no espetáculo, o mesmo criticado por Guy Debord na célebre obra A Sociedade do Espetáculo, e no “na tela”. É assustador perceber que o processo de edição de reportagem, em algumas das grandes redações da imprensa nacional – ou seja, veículos lidos por muitas pessoas –, o uso indevido das aspas (depoimentos) seja prática rotineira, apenas para tornar mais espetacular determinada história (verdadeira ou não). Se o erro grotesco é reprovado pelos manuais de jornalismo, por outro lado é venerado por meia dúzia de chefões nos jornais.

Não se trata de direcionar um olhar carregado de pessimismo, mas questionar, por meio da identificação de erros, com o objetivo de gerar reflexões sobre o que virá no futuro. E o documentário resgata causos interessantíssimos, como o registrado em 2010, quando uma bolinha de papel, arremessada em um dos candidatos à presidência, virou uma série de outros objetos, e pior, a conclusão precipitada de identificação do agressor não considerou as imagens captadas, que desmentiam o que foi veiculado e publicado à época. O que dizer então sobre o “furo” de reportagem, amplamente divulgado em 2004, que denunciava a existência de uma obra original assinada pelo artista Pablo Picasso em um prédio do INSS, adornando caprichosamente o local administrado pelo governo. Na realidade, o quadro era uma réplica, daquelas que se compra em qualquer esquina.

Embora o sentimento apocalíptico prevaleça após assistir ao documentário, é possível observar brechas nesse sistema engessado com o qual nos deparamos diariamente no noticiário nacional. Vale fazer menção ao professor Milton Santos, que certa vez disse que na hegemonia estabelecida também há espaço para a contradição – ou, neste caso, o simples fazer diferente. Por mais que algumas linhas editoriais se mantenham propensas a fazer jornalismo de baixa qualidade, o tratamento da informação ainda está exclusivamente nas mãos e no talento do jornalista, e é ele quem deve olhar para si e refletir sobre os rumos do seu trabalho, cujo papel é fundamental na manutenção de uma sociedade democrática e justa. 

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