Pensar em uma sociedade sem conflitos e violência pode parecer um objetivo inalcançável. Mas alguns estudos e pesquisas buscam exemplos e soluções para minimizar essa dura realidade que atinge todos os países e continentes, cada qual com sua peculiaridade. Foi no caminho de encontrar respostas para os conflitos que ameaçam a sociedade, assim como soluções que possam contribuir para a prevenção da violência, que aconteceu o 8º Diálogo Brasil-Alemanha de Ciência, Pesquisa e Inovação, em 30 e 31 de outubro, na capital paulista sob a temática central “Radicalization and Violence: Perspectives and Prevention Approaches”.
O 8º Diálogo Brasil-Alemanha de Ciência, Pesquisa e Inovação ocorreu em 30 e 31 de outubro, na capital paulista | Foto: Felipe Mairowski |
Com organização do Centro Alemão de Ciência e Inovação (DWIH São Paulo) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o evento, que sempre conta com a presença de especialistas dos dois países, recebeu mais de 115 participantes. Além de terem a oportunidade de conhecer as mais recentes pesquisas sobre o assunto, puderam dialogar com os palestrantes levando as temáticas abordadas a um alto nível.
A abertura do Diálogo 2019 contou com a presença do presidente da Fapesp, Marco Antonio Zago; do diretor designado do DWIH São Paulo e do escritório regional do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) no Rio de Janeiro, Jochen Hellmann; e do cônsul-geral da Alemanha em São Paulo, Axel Zeidler. “Nossa parceria com a Fapesp é uma importante plataforma de cooperação e conhecimento que conecta e promove a ciência, inovação e pesquisa Brasil-Alemanha. Dessa parceria nasceu o Diálogo, que possibilita uma interação internacional entre os cientistas e pesquisadores dos dois países, contribuindo para o progresso da ciência mundial”, declara Hellmann.
Já Zago, por sua vez, pontuou que o Diálogo representa uma oportunidade para que pesquisadores dos dois países se encontrem, troquem ideias e façam da ciência e da inovação uma plataforma de colaboração e progresso.
Para Zeidler, Brasil e Alemanha estão sempre em sintonia colocando em pauta temas interessantes e importantes: “Essa edição do evento trouxe uma temática totalmente atual e que precisa ser discutida em seu caráter social, político e cultural. Esse espírito de cooperação é a base para que nossos pesquisadores, universidades e instituições possam juntos gerar resultados e inovações”, declara.
Identificando a radicalização de conflitos e a violência, pela primeira vez no Brasil, o palestrante Julian Junk, do Peace Research Institute Frankfurt (HSFK), falou sobre “Radicalization and Violence – Insights from Germany and Europe”. Junk reforçou que essa temática não se trata de um assunto novo, nem mesmo de uma nova ameaça, mas a prevenção contra o extremismo deve ser sustentável e abrangente. Para ele, a disputa de visões e opiniões nem sempre representa uma ameaça, já que a radicalização pode ser também uma alavanca importante de progresso social.
Porém, o problema surge quando a intolerância e o ódio levam ao uso da violência para alcançar objetivos culturais, sociais e políticos. “Se a radicalização resulta em violência, sua atribuição é completamente destrutiva para a sociedade. Mas, se ela acontece no sentido de possibilitar algo novo, sem implicações violentas, aí a radicalização pode aparecer como uma ferramenta de inovação e oportunidades”, explica Junk. Em sua apresentação, o palestrante pontuou ainda insights sobre a violência e a radicalização de conflitos, tanto na sua forma individual quanto em grupos, e em seus diferentes contextos e ambientes (on-line e off-line). “Essa discussão chegou a um novo patamar e dimensão, ou seja, não está apenas no âmbito social e político em si, mas atingiu rapidamente o cenário virtual”.
Sob as lentes da atualidade sócio-política do Brasil, Esther Solano, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), contribuiu com o tema “Understanding socio-political hate in Brazil”. Construído em uma sociedade desigual, o Brasil vivencia o que ela denomina “Tsunami Bolsonarista”. Ou seja, um fenômeno que chegou com uma força descontrolada e aguçando momentos de ódio e violência no país, intensificados com o ambiente virtual. “As redes sociais amplificam esse cenário, surgindo como uma plataforma usada para atrair e recrutar seguidores para movimentos e ações que muitas vezes estão enraizadas no ódio”.
A professora titular do departamento de antropologia da Universidade de São Paulo (USP), Lilia Schwarcz, foi uma das palestrantes do segundo dia do evento com o tema “Past and present: violence and authoritarianism in Brazil”. Fazendo um panorama sobre a violência e o autoritarismo no Brasil, Lilia relatou um País mergulhado no preconceito, desigualdade social e a falta de oportunidades e de educação.
“Difícil acreditar no Estado brasileiro. Apesar de vivermos em uma democracia há mais de 30 anos, na verdade o cenário não é bem assim. A democracia tende a buscar por melhorias para a sociedade e, infelizmente, as cenas de violência e autoritarismo que vivenciamos no Brasil não demonstram isso. Aliás, se olharmos por essa lente, o Brasil nunca deixou de ser um país que reflete um autoritarismo, que desencadeia em conflitos, violência e mortes. Se os responsáveis pela política trabalhassem de mãos dadas com os pesquisadores, haveria uma chance real de conseguirmos enfrentar e evitar tantas mortes desnecessárias”, afirma a professora.
A prevenção da violência e da radicalização de conflitos, com exemplos e casos de sucesso da Alemanha, que possui uma longa tradição em estudos e pesquisas sobre a paz e conflitos, foi foco da apresentação de Thomas Fischer, da Universidade Católica de Eichstätt-Ingolstadt (KU), também palestrante do segundo dia. “Na Alemanha há uma tendência em prol da paz e da prevenção de conflitos, com apoio de universidades e instituições que colaboram com pesquisas e iniciativas. Nesse âmbito, o Conselho Alemão de Ciências e Humanidades (Wissenschaftsrat) colabora com insights direcionando pesquisas, qualificações, ensino e apoio a jovens cientistas, além de uma plataforma de networking e colaboração”, explicou Fischer.
No âmbito cultural e educacional, Hans-Christian Jasch, da Casa da Conferência do Wannsee, trouxe as atividades desenvolvidas pela sua instituição, que colabora com a preservação da memória em prol da conexão com o presente. “Manter a memória viva, com base no conhecimento e na história é, de certa forma, o espaço para a educação. Em particular, a Alemanha desenvolve políticas que tratam do passado, da história pública, da cultura da memória, e da pedagogia da paz. Esses fatores contribuem na troca de experiências e conhecimentos, além de nos conectar da melhor forma com o presente”.
Sobre o papel das prisões e da violência policial, que constroem redes criminosas no Brasil, Camila Nunes Dias, da Universidade Federal do ABC (UFABC), fez sua apresentação baseada nos resultados de uma série de pesquisas realizadas nos últimos 10 anos sobre a expansão da divisão criminosa PCC nas prisões de São Paulo, assim como seus efeitos nas regiões fronteiriças, especialmente na economia de drogas ilícita. “Grupos criminosos prisionais surgiram em todos os estados brasileiros e interferem diretamente na dinâmica da violência e do crime no país. Entre esses grupos, o PCC é, sem dúvida, o mais organizado e estruturado, sendo um dos principais atores da economia criminal da América do Sul. Nesse sentido, a prisão constitui um espaço de produção e reprodução para a articulação de redes criminosas”.
Seguindo pelo contexto do sistema presidiário, Markus-Michael Müller, da Freie Universität Berlin, que contribuiu com o tema “Institutional Radicalization: How tough on crime policies can strengthen Latin American street gangs”, acredita que a reflexão sobre as causas da radicalização e da violência na América Latina deve abordar também o papel das prisões como locais de processos de radicalização dobrada. Para ele, as prisões da região são consideradas negligenciadas, mal financiadas e sobrecarregadas. “Um dos aspectos do cenário de insegurança da América Latina, em termos acadêmicos e políticos, tem sido o sistema penitenciário da região. Grupos criminosos exploram essa situação, transformando as prisões em locais ideais para recrutar e radicalizar presos comuns, aproveitando-se de sua socialização em uma cultura específica de violência, como no caso de gangues de rua”.
De olho na prevenção da violência, Müller acredita que medidas preventivas poderiam neutralizar essa radicalização mútua (política e criminal) e seriam um importante ponto de partida para quebrar esse ciclo vicioso e melhorar, de maneira sustentável, a situação da segurança na América Latina. Para a antropóloga Schwarcz, a educação é a estratégia base no que se diz respeito a prevenção da violência, em especial no Brasil. “Acredito que só a educação tem a potencialidade para travar o gatilho da intolerância e da desigualdade existente entre nós”, complementou.
Alba Zaluar, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), também aposta na educação, em medidas restritivas de segurança e em projetos esportivos, artísticos e culturais que possam dar alternativas de pertencimento e renda para os jovens. Para ela, há uma necessidade de mudanças no sistema escolar para que nem tantos jovens abandonem a escola nos ensinos fundamental e médio.
“Essa mudança é crucial para abrir as oportunidades no ensino técnico, universitário e, consequentemente, no mercado de trabalho com mais alternativas e melhores salários. Além da investigação, controle e restrições ao tráfico de armas, precisa-se, portanto, de um grande investimento público na formação dos jovens. Esta formação deve retomar o processo civilizatório, que sofreu um grande retrocesso nas últimas décadas. Além disso, a prioridade maior deveria ser a reforma urgente e absolutamente necessária das nossas forças policiais”, afirmou Zaluar que participou do primeiro debate como palestrante com o tema “Vicious circles in public security and the increase of crime in Brazil”.
Além de Thomas Fischer, os moderadores dos painéis Sérgio Adorno e Vitor Blotta, ambos do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, e Stefan Kroll, do Peace Research Institute Frankfurt (HSFK), que presidiu as sessões de keynotes, formaram o comitê científico do Diálogo Brasil-Alemanha de Ciência, Pesquisa e Inovação 2019.
Ao fim dos dois dias de evento, aconteceram rápidas sessões de perguntas e respostas com representantes de agências de fomento. No dia 30, representantes do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD), da Sociedade Alemã de Amparo à Pesquisa (DFG) e da Fapesp falaram sobre programas de apoio à cooperação científica. No dia 31, as mesmas agências, além da Fundação Alexander von Humboldt, informaram sobre bolsas individuais.
O evento contou com a parceria do DAAD, Ministério das Relações Externas da Alemanha, USP (Universidade de São Paulo), Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e Unesp (Universidade Estadual Paulista). O evento teve apoio da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), Fundação Konrad Adenauer, Fundação Heinrich Böll Rio de Janeiro, Associação de Engenheiros Brasil-Alemanha (VDI-Brasil), Goethe-Institut e Mecila (Maria Sibylla Merian International Centre for Advanced Studies in the Humanities and Social Sciences Conviviality-Inequality in Latin America).
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