segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Capitalismo à brasileira

por Daniel dos Santos Rodrigues* - do site Jota.Info


Passadas as eleições – e dissipada parte da cortina de fumaça que fora lançada sobre inúmeros temas relevantes (e ignorados) para o debate público – talvez agora estejamos aptos a discutir, sem grandes paixões, as razões em torno dos preconceitos diversos com relação ao programa Bolsa Família.


Existem muitos estudos sérios sobre o programa que nos ajudam a desfazer alguns dos seus principais mitos. Um desses estudos é a obraVozes do Bolsa Família, fruto de uma pesquisa de 5 anos da socióloga Walquiria Leão Rego e do filósofo italiano Alessandro Pinzani que conclui que o benefício assistencial, muito embora tenha um impacto orçamentário irrisório (0,5 % do PIB) e ao contrário do senso comum, não é assistencialista nem torna o beneficiário “encostado” ou “vagabundo”, mas, antes, dá-lhe uma autonomia até mesmo empreendedora em lugares em que não se encontra emprego ou em que se é refém de atividades análogas à escravidão, diminuindo-se assim a dependência do coronelismo e da compra de votos nos rincões do Brasil

Apesar de sumamente interessantes, os pormenores dos resultados empíricos e positivos do Bolsa Família deixo a cargo do leitor mais curioso, que pode encontrar muitas fontes qualificadas na internet. O mote do presente texto é outro: tentar encontrar, dentre as inúmeras raízes dos preconceitos contra o Bolsa Família e contra os seus beneficiários, aquelas que talvez morem no âmago de nossas contraditórias concepções de justiça, especialmente as da tradição liberal. Em suma, quero responder à pergunta se seria o Bolsa Família incompatível com o liberalismo.

De início, é importante destacar que os recentes programas de transferência direta e condicionada de renda na América Latina, incluindo o Bolsa Família e similares, parecem não possuir origens vinculadas ao pensamento mais à esquerda. Sugerem a cientista política Cristiane Kerches da Silva Leite e a economista Ursula Dias Peres que tais programas nasceram nos países latino-americanos na década de 1990 menos como autênticas políticas de desenvolvimento social e mais como instrumentos de mitigação dos custos sociais dos ajustes macro-econômicos da agenda ‘neoliberal’.

No Brasil, registre-se, um dos grandes responsáveis no Governo Lula por pensar matemática e tecnicamente o Bolsa Família foi um brilhante economista liberal do IPEA, Ricardo Paes de Barros, que, juntamente com outros economistas do IETS (Instituto de Estudos de Trabalho e Sociedade), produziram um documento intitulado “Agenda Perdida”, o qual continha um conjunto de reformas econômicas liberais a serem apresentadas aos candidatos a presidente nas eleições de 2002. Trocando em miúdos: pode-se afirmar que o programa, nos moldes em que foi implementada em anos recente – e muito embora tenha recebido contribuições também da esquerda, como a proposta de ‘renda básica de cidadania de Cristovam Buarque e Eduardo Suplicy – , é uma pauta da direita, que contou e ainda conta com amplo apoio do Banco Mundial, diga-se.

Mas tendo como foco a discussão pública em torno do tema, suponho que grande parte da rejeição ao Bolsa Família – descontando, obviamente, o sentimento antipetista de alguns setores da mídia e de parte da classe média, que acaba transferindo o ódio ao PT ao programa assistencial – esteja fundamentalmente relacionado a uma má compreensão acerca da evolução de dois princípios caros ao liberalismo, quais sejam, os princípios da igualdade e do mérito individual.

Para compreendermos os mal-entendidos em torno destes temas, não precisamos ir muito longe ou apelar para teorias “marxistas” ou “socialistas”, como alguém poderia supor. A própria tradição liberal nos oferece caminhos profícuos, sendo a teoria de justiça do filósofo americano John Rawls relevantíssima para o presente debate. Rawls na década de 1970 revolucionou a filosofia política e a discussão sobre a justiça distributiva com uma obra monumental (Uma Teoria de Justiça) e de lá para cá vem influenciando inúmeros pensadores tanto à esquerda quanto à direita. A complexidade do pensamento rawlsiano não cabe neste breve texto, porém uma pequena discussão sobre algumas de suas reflexões nos será extremamente útil.

Pois bem. Com a ajuda de Rawls, é possível constatar que a concepção de igualdade e mérito ainda dominante em boa parte das democracias liberais na atualidade (não fugindo à regra a brasileira) é aquela do liberalismo clássico (que nasce em Thomas Hobbes, passa pelo utilitarismo e cristaliza-se em Robert Nozick), a qual considera legítimas as desigualdades sociais provenientes do talento natural e de contingências diversas. Esta concepção, apesar de historicamente superada, é ainda hoje imperativa, porém se manifesta de forma contraditória, pois, não obstante pensarmos que o mérito individual, totalmente separado de outras contingências que não foram objeto de escolha pelo indivíduo (características genéticas, a família em que nasce etc.), é o único meio apto a reivindicar uma maior quantidade de bens sociais, sabemos atualmente também, de outro lado, que tal separação de fato é impossível. No entanto, como uma perfeita igualdade de oportunidades é algo inalcançável, acabamos achando que as desigualdades resultantes de contingências e de habilidades inatas diversas não merecem ser objeto de maior contestação. Em uma palavra: muito embora tenhamos a intuição de que muita coisa que alguém aufere ou possui não é fruto do seu trabalho ou do seu próprio esforço – i.e., não é “mérito” dele – , pouco fazemos para remediar tal injustiça, já que isto parece ser inútil. Entendo que é neste comportamento ambíguo que mora nossa leniência e apatia com relação ao combate à pobreza e à desigualdade social.

Para contornar tal problema – e isto sem apelar para uma igualdade estrita de resultados, arranjo que, obviamente, ultrapassaria a tradição liberal, desestimularia o desenvolvimento de habilidades individuais variadas e se aproximaria do ideal de justiça fracassado do socialismo marxista-leninista tal qual o conhecemos na URSS (propriedade estatal dos meios de produção e economia planificada) – Ralws entende que uma sociedade liberal bem ordenada deve defender, ao lado dos princípios de ‘liberdade igual a todos’ e de ‘igualdade de oportunidades’, um princípio de fraternidade, o qual chama de princípio da diferença. Em resumo, este princípio prescreve que as desigualdades sociais e econômicas só podem ser admitidas quando promoverem o bem-estar e as expectativas dos menos favorecidos, e isto pela simples razão de o fruto do trabalho de cada um ser também o resultado do trabalho de toda a sociedade, da cooperação social, i.e., nenhum trabalho é absolutamente individual.

Evidentemente que a concepção ralwsiana apresentada acima é um construto teórico (muito sofisticado e polêmico, diga-se de passagem), sendo que muita coisa desde então vem sendo produzida no mundo real no sentido de traduzi-lo em políticas legislativas concretas. Mas o ponto a ser destacado é que o princípio da diferença ralwsiano talvez seja o primeiro empreendimento moral bem acabado do liberalismo a inserir a fraternidade e a solidariedade no seio de sua própria tradição, o primeiro a afirmar que o bem-estar dos menos favorecidos não deve ser objeto de favor ou de esmolas dos mais ricos, mas, ao revés, deve ser uma obrigação política da sociedade e um direito, assim também como o são os direitos à propriedade ou à vida.

Muitas críticas também foram apresentadas contra Rawls, principalmente da parte dos ‘libertários’, a exemplo de Nozick e Milton Friedman, para os quais a liberdade individual não pode ser restringida de forma alguma. Friedman, por exemplo, apesar de aceitar a afirmação de Rawls de que é impossível separar a capacidade puramente individual daquilo que o indivíduo recebe sem qualquer esforço da sociedade (herança, doações, ambiente etc.), afirma que fazer qualquer coisa para tentar mitigar tal impossibilidade é eticamente injustificável, pois estar-se-ia ferindo a liberdade. No entanto Friedman acabada aceitando uma pequena restrição desta liberdade para combater a pobreza ao propor um ‘imposto de renda negativo’, que teria a função de subsidiar uma benefício em dinheiro aos indivíduos que recebessem renda abaixo do limite de isenção do imposto de renda.

Aqui é importante atentarmo-nos para o fato de que mesmo em um pensamento liberal mais radical, como o de Friedman, podemos perceber uma preocupação muito maior com o bem-estar dos mais pobres do que usualmente verificamos em nossos “liberais” e conservadores tupiniquins. O ‘imposto de renda negativo’ de Friedman é uma solução interessantíssima e já aplicada em alguns lugares, mas suponho que, caso fosse ventilada sua implementação no Brasil, muitos o teriam como um insulto, levando-se em conta as reações quase doentias contra o Bolsa Família. Como destaca o sociólogo Álvaro de Vita, se a aplicação pura e simples do ideal de ‘igualdade liberal de oportunidades’ no Brasil já “tem implicações quase revolucionárias”, imagine-se então uma teoria de justiça como a de Rawls, que insere como dever e direito político (não apenas moral) do cidadão a solidariedade social, ou o direito a uma renda mínima universal (sem qualquer condicionante, como nível de pobreza ou frequência das crianças à escola), nos moldes da proposta do revolucionário inglês Thomas Paine.

Em português bem claro: não há como ajudar alguém a pescar se o sujeito não possui forças nem sequer para segurar uma vara. E muitas das razões de ele não conseguir segurar essa vara fogem completamente de suas escolhas, não fazendo parte do seu “mérito individual”, pois ninguém escolhe nascer na Leblon ou na Libéria tomada pelo ebola, muito menos ser filho de Bill Gates ou de uma costureira escrava boliviana da indústria da moda de São Paulo.

A caminho da conclusão, podemos então responder negativamente à pergunta feita no título. Porém alguém ainda poderia argumentar: “OK. O Bolsa Família é necessário, mas não pode ser uma política permanente, mas somente paliativa e temporária, pois devemos investir em educação e na geração de empregos, o que tornará as condições econômicas do país melhores, momento então que o programa deixará de ser necessário”.

Com efeito, não há como discordar da imprescindibilidade das políticas de educação e de geração de emprego. Porém isto não nos leva necessariamente, mesmo dentro do liberalismo, à conclusão de que um programa de transferência de renda aos mais pobres deva ser uma medida paliativa. Como argumenta Rawls, uma sociedade liberal bem ordenada valoriza a diferença, considerando-a importante não só para o desenvolvimento de nossos talentos e de nossos projetos individuais de vida, mas também à sociedade como um todo – afinal, admiramos e valorizamos um músico excepcional, um jogador de futebol fora de série ou um físico que nos revela os mistérios do universo. Nada obstante, valorizar a diferença e a liberdade também produz efeitos colaterais permanentes, como as desigualdades de renda e de poder, as quais invariavelmente descambam para relações de subordinação e de opressão, problemas esses que não podem ser simplesmente ignorados. Conforme nos alerta o economista francês Thomas Piketty, a diferença entre ricos e pobres no mundo só tem aumentado nos últimos, desnível este que, conforme os estudos empíricos do epidemiologista social e economista inglês Richard G. Wilkinson, é uma fonte muito maior de problemas sociais diversos (criminalidade, abuso de drogas etc.) do que a miséria em si ou a pobreza pura e simples.

Neste sentido, um direito ou um dever de solidariedade afirma-se não como uma concessão de nosso arranjo ético-político, mas como algo absolutamente necessário e fundamental. Mais fundamental ainda em vista de que escolhemos viver (e valorizamos essa escolha) em uma sociedade de mercado, na qual o trabalho é uma mercadoria de troca como outra qualquer e que, portanto, sujeita o trabalhador a uma instabilidade existencial brutal (a ‘economia da incerteza’, na qual o desemprego é apenas uma de suas facetas, como escreve Zygmunt Bauman), principalmente quando marginaliza (i.e., não remunera bem e/ou distribui mal) inúmeras atividades sumamente importantes para a vida social (como a preservação da saúde, do meio ambiente, o cuidado com os idosos etc.) e condiciona a sobrevivência do indivíduo à entrada no mundo do consumo. Bem, mas isso aí já é pano para um outro artigo.

*Promotor de Justiça em Minas Gerais, Pós-Graduado em Direito Público e Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás

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